António Escudeiro era um cineasta português de quem, até domingo, 20 de Outubro, poucos angolanos tinham ouvido falar. E duvido que mesmo aqueles que soubessem da sua existência lhe conhecessem as origens angolanas. Mas isso mudou, neste fim de semana em que Escudeiro resolveu sair do armário, com um documentário, “Adeus, até amanhã”, apresentado no Doc Lisboa como uma declaração de amor a Angola. O amor não correspondido é sempre um embaraço. E isso percebeu-se no debate que se seguiu à exibição do filme, quando, vários angolanos, luso-angolanos, portugueses com interesses em Angola, e mesmo um escritor cabo-verdiano, Joaquim Arena, se levantaram e denunciaram o roteiro sentimental de Escudeiro como um documento saudosista, racista, e que retrata Angola de uma forma em que muitos dos seus naturais não se revêem.
Escudeiro começa o filme com uma frase que já se tornou cliché entre a população de ex-colonizadores: “foi forçado a deixar o país em 1975”. Espera-se que ele vá fundamentar esta afirmação; espera-se ver um António jovem, arrastado por amigos e familiares, aos gritos porque o que ele mais quer é ficar na sua terra natal. Mas não. Escudeiro não pretendeu fazer um documentário-tese, mas tão somente usar o dinheiro do Estado português para apresentar um postal desconexo, de imagens fortes é verdade, mas sem uma estrutura, e sem uma visão critica sobre o que dá a ver neste filme.
Neste documentário, que era pois um roteiro sentimental, uma revisitação do país, 30 anos depois de aí ter vivido, Escudeiro trabalha a sobreposição de imagens. Num primeiro plano são as imagens de um país destruído pelas várias décadas de guerra colonial e anticolonial; as paredes esventradas, os passeios partidos, o lixo na rua, os projectores enferrujados dos cinemas caídos em desuso. Num outro registo são as fotos a preto-e-branco do esplendor da colónia. As locomotivas do caminho-de-ferro de Benguela novas em folhas; o fausto dos jantares em família, servidos por criados pretos; o pequeno António montado às cavalitas do criado preto; o pequeno António empurrado numa bicicleta também pelo criado preto.
Num filme cheio de intenções estéticas, com um fotografia espantosa, a cor serve de separador aos dois textos. O tempo colonial é a preto-e-branco. O tempo pós-colonial é a cores. Mas Escudeiro quer aproximar os dois tempos o mais possível, pois, só quebrando em parte a descontinuidade entre os dois tempos é que ele pode afirmar-se angolano. E fá-lo sobretudo pelo recurso à estaticidade ou ausência de movimento. Nas imagens coloniais isso é natural: são fotografias dos álbuns de família. Mas como é que António alcança isso nas imagens mais recentes? Dissolve as pessoas nas paisagens, de tal forma que pareça natureza morta. Pela ausência de movimentos e falas os negros se tornam espectros. A câmara vigia-os, desnuda-os, silenciosamente, até revelarem a Escudeiro a imagem de Angola que lhe convém: um país de gente triste e assustada. Esta espectralidade está ainda presente na desproporção entre a imensidade do território e a quase ausência de seres humanos. A Fenda da Tundavala aparece, filmada bem do alto, para dar a ideia de uma natureza que se sobrepõe e esmaga os humanos; é filmada uma aldeia perdida nas montanhas, momento em que Escudeiro filosofa sobre a sorte do povo que a habita e que vive “dramaticamente só”.
Escudeiro, perdido no seu tempo colonial, quando aos africanos não lhes era permitido dirigirem-se ao homem branco, fala por estes. Os africanos só se lhe dirigem para confirmar o que ele quer ouvir: que é angolano. Isso acontece quando aparece um preto velho, nos ombros de quem Escudeiro paternalmente repousa os braços, que se lembra do pai do realizador e lhe atesta a angolanidade. E mais adiante no documentário, quando Escudeiro está numa sala de aulas, na Escola Mandume, onde terá feito os seus estudos liceais, e escreve no quadro que naquela cidade nasceu e naquela escola estudou. E lá os adolescentes cantam em coro o que lhes diz o homem branco.
Escudeiro continua ainda a operar nos pressupostos do colonialismo, mesmo trinta anos depois da sua erradicação. É o seu olho mecânico que desvenda África que só se torna inteligível na sua voz condescendente. Em suma, só em estado de isolamento absoluto, insensível e indiferente a tantas décadas de história de um continente fremente, é que Escudeiro ainda se pode arrogar ao direito de falar pelos africanos. É preciso que tenha passado ao lado do texto seminal de Jean-Paul Sartre, Orfeu Negro, que anuncia o movimento da negritude, em que este filósofo, quando a França ainda tinha colónias em África, lê os poemas de jovens africanos a quem pela primeira vez lhe tinha sido dado o direito à fala. Aos seus compatriotas, Sartre pergunta: “o que esperavam que acontecesse quanto tirassem a mordaça que tapava a boca dos negros? Que vos entoassem louvores?” Mais de 50 anos depois de Sartre, Escudeiro volta a restituir a autenticidade de Angola (ele diz no filme: “Angola só será Angola quando for autêntica”): as bocas dos africanos só se abrem em louvor ao homem branco.
Mas Escudeiro fez também tábua rasa de algo muito mais importante, e mais imperdoável quanto mais se trata do seu métier de cineasta: uma longa e profícua tradição de documentário em África. Para haver um “Adeus, até amanhã” é preciso que um Jean Rouch nunca tenha existido. Nos anos 50, o antropólogo e documentarista francês, muito próximo do movimento surrealista, aluno de Marcel Griaule, realizou vários documentários, entre os quais, Moi, un noir, que vinha quebrar um paradigma de representação de África e dos africanos que vigorava desde a “descoberta” do continente. Pela primeira vez um documentário tinha um homem negro como personagem principal: um negro que falava dos seus problemas; das suas misérias e dos seus sonhos; dos seus entretenimentos e das suas dúvidas. A pobreza de África em vias de tornar-se independente aí está, captada pelo lado do absurdo, que torna Moi, un noir um documento estético de enorme influência na história do cinema. Foi no documentarismo de Rouch, em particular neste filme, em que Jean-Luc Godard e François Truffaut se inspiraram para lançar a revolução nos modos de representar o movimento que se chamou Nouvelle Vague.
O filme acaba do mesmo modo que começa: a imagem dos projectores enferrujados do cinema onde Escudeiro viu o Casablanca. Humphrey Bogart aparece nas imagens de filme, o que sabe terrivelmente a nostalgia dos tempos áureos de Angola. Mas ao longo do filme nem uma palavra sobre o colonialismo. O pai de Escudeiro era um dos engenheiros que construiu os caminhos de ferro de Benguela. E não há uma linha sequer sobre a condição em que os portugueses nasciam, cresciam e se reproduziam em Angola. Muitos escritores angolanos, brancos, privilegiados do sistema colonial, afirmam que foi a imagem da violência inerente ao colonialismo que os tinham levado à revolta e à militância nos movimentos de libertação. Para Escudeiro isso é um hiato que, na esteira do descalabro de Angola, pode felizmente fechar-se, e só assim Angola se encontrará e voltará a ser autêntica, nota positiva com que Escudeiro termina a sua incursão pelo presente do país independente que o viu nascer.
António Tomás em http://ofazedordeutopias.blogspot.com
terça-feira, 23 de outubro de 2007
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