terça-feira, 29 de abril de 2008

A Cidade Tal & Qual

Luiz Araújo

 Espelho de quem tem, pode, faz, desfaz e manda...  e dos mais que muitos que porque não têm — sequer — quem lhes compre o litro, olham só os outros perguntando-se sobre o ter e o dar dos deuses. “Milhões de casebres sem nº, em becos sem nome, de bairros sem plano nem futuro”... [em tempo útil] “e a condizer, milhões de panelas cheias de nada”. Não vá acabar de repente a justificação da mão estendida à caridade cristã ocidental. A morte levando e a vida gerando mais morte, com os olhos arregalados como janelas abertas ao temporal dum pandemónio agravado.

Bolsas de ar condicionado - do ultimo grito - em estradas desventradas, a caminho do céu por essas vias metropolitanas, sob o olhar abuamado dos meninos, sem caderno, nem escola, nem mestre, nem futuro. Só — e só mesmo — à solta na turbulência das ruas e avenidas buscando “pão & patex”. Em estratégicas sobrevivências ganzadas, o futuro...

Modas & modelos elegantes, very sexy. Memoráveis noites de gala no Cine Karl Marx,  como se la belle Paris tivesse morada aqui. E a Joaninha dos carrapitos, doze anitos, na praça e na vida... num paraíso pedófilo, safando a barriga ao pai mutilado de guerra alcoólico, à avó sem mais força para lavadeira e aos manos pequeninos. A mãe foi à praça e nunca mais se soube dela.

Finos condóminos entre muros, com guarda pronta a disparar. Reinvenção local do medo do pobre, essa ameaça ao chefe e ao rico. E isso de ser-se ameaça não fica nada bem, não é? Mormente quando o terrorismo, filho da injustiça e da pobreza anda  - com toda a família azarada - à solta por aí, a aprontar contra a globalização e seus serviçais locais. Se apanhado o gajo, sovado, cadeia ou até despacho pró além. O dirigente, o chefe não rouba, o que tem é por direito. É quadro sacrificado a trabalhar pela nação e pela democracia. O que tem é merecido, sim senhor. A sorte da sabideza é que lhe dá. E até pra já, cada um saiu da mãe dele com o destino que Deus lhe deu.  Justiça? Estado de quê? Não, não, essa parte não, absolutamente. O monarca não concorda. Ocidentalizado sim senhor, mas nada de extremismos. Igualitarismos perante a lei? O quê? Só faltava mais essa. Afasta-te disso mazé. Pensam que estão aonde? Nada disso pá, alto lá, até aí definitivamente não!  Podem ser da civil e tudo, falem como quiserem, mas essa reacção aqui não passa mesmo. Corrup... quê? Ai, ai, ai, guaaardas! Guaaaaardas!

A cidade resigna-se, “esquece” o golpe e refaz-se de terra esbulhada. O gentio sem dinheiro pra pagar ao Dr. Advogado. Juntos — cidade e gentio — atirados mais para além da urbe e da sa(n)grada esperança. Qualquer dia o muceque estará a fazer labirintos lá no berço, em Catete. Já faltou mais. Havemos de lá chegar [ com ] as nossas tradições, políticas. O poeta enganou-se, ao inventar o projecto... (n)as nossas bebedeiras...

Prédios a gotejar água verde e viscosa, escorrendo cidade abaixo, fazendo lagoas para se brincar de canoa e patinho na piscina faz de conta, aparecida no musséquinho perto da Mutamba. Num lado do charco a vovó Mingota, ocupa o tempo vendo passantes e vendendo baratices. Do outro lado o maluco — no contentor do lixo - disputa um osso com o cão vadio e sarnento. Sai vitorioso com o trofeu entre os dentes e aquele olhar de génio ausente que só os loucos conseguem. O cão sem sorte foge ganindo, mordido.

Entretanto, nas escadas dum prédio duas famílias inteiras brigaram, a algazarra virou manchete de telejornal, reproduzida até pela CNN. O porco comeu o jantar do vizinho e a policia não veio resolver o caso, porque são pobres e desconseguiriam pagar a gasosa. E ninguém puniu a polícia por negligência.

Na rua, fiscais de raça raivosa aboletam-se com bugigangas de vendedores ambulantes. E uma cambista é assaltada à mão armada por agentes da autoridade. Levam-lhe a bufunfa toda, o banquinho e a sombrinha. 

Num cruzamento, indiferentes a tudo, um cego, um mutilado de guerra e a mãezinha com o caçula às costas — sem sindicato — disputam a caridade em território desordenado, numa estratégia mendiga "anárquica".  Alguém dá esmola, outro não, não tem também. Outro pecador - no carro reluzente - incomodado pela mão estendida dum desses esqueletos ainda xinga a miséria, porque é andrajosa, suja, repelente, dá má imagem  e isso não pode ser... quem de direito tem que tomar medidas contra essa calamidade... o que é que os estrangeiros vão pensar de nós? Cum caraças, Imaginem só a desgraça que havia de nos calhar. Até parece que ao serviço duma conspiração internacional, o monarca e todos os lacaios da corte se aliaram contra nós!

Um ministro, um arquitecto iluminado e um jurista comissário, encontraram a chave do segredo, olhando a urbe da janela dum prédio muito alto, vendo tudo  tão pequenino e de tão longe, fazem o plano director da cidade. Desta vez é que vai ser. O Governador zonzo depois dum puxão de orelhas do monarca, com ares de quem entende e pode, observa o plano e pergunta se têm gente lá. Se tem zango(me) com ela... O monarca e o Ministro concordam - mas não assinam o despacho. De boca, orientam:  acabe-se já com a "anarquia". Mande-se a  tropa e a policia, corra-se com os safados. Quem é que pensam que são? Cidadania e direitos? Qual quê! Desde quando... ? Aqui, enquanto durar esta ordem, mando só eu! Aqui chefe é chefe mesmo e vai continuar a ser chefe e até eleito, para mais cinquenta anos! Ou duvidam?

Na praça a vida continua como se nada tivesse subvertido a ordem e um cão sem dono [com mais sorte do que aquele que foi mordido pelo maluco] mete pena a um militar que com ele partilha o almoço, num acto de amor ao próximo. O maluco testemunha o acontecimento e espantado grita que a cidade enlouqueceu. Um velho abana a cabeça e diz que antes não era assim. E o neto que traz pela mão, pensa que o avô — com a idade - é que deve estar a enlouquecer. Mas se sempre foi assim, podia ser mais como então? Seguro de si pergunta-se o petiz.

Na avenida marginal, do lado de fora do gradeamento duma esplanada, desesperados comem com os olhos a fartura dos pratos e embebedam-se na miragem dos copos de cerveja suados. Pela participação óptica no banquete, percebem-se melhor na vida. É que o olhar  alimenta o espírito, cultiva... e cultura, a nossa, sempre a prezamos muito. 

Coisas da cidade e da sua gente vivendo o seu tempo, a cada momento do dia reinventando-se no ventre duma sina rigorosamente (des)planificada apenas por descuido dos deuses, só isso, uma falha menor e não intencional, compreensível, até altamente perdoável. Aliás já perdoada. Alguém pode ser culpado por actos divinos? Decerto que ninguém. Duvidas acerca disso, só mesmo na boca da tal de sociedade civil ou de jornalistas movidos de má-fé. Não liguem, não são nada...

Entretanto a cumplicidade da noite, escura aqui iluminada acolá. E a cidade mais a pobreza – tal & qual — reincidentes crónicos, aproveitam-se da noite e sem qualquer réstia de pudor acasalam-se em público, sobre um papelão imundo estendido por aí, ao calhas. E cumprindo um destino comum reinventam-se sonhando com um papelão mais digno, já para amanhã, talvez, quem sabe...