domingo, 4 de julho de 2010

vidas suspensas

só...

estão aí

não fogem de nada

não estão indo

nem chegando

já nem são nostalgia convocando regressos

nem à guerra

nem ao fundo da memória

da escravidão repetindo-se

desde a sementeira da salvação de almas

até à libertação

envenenada de traição

para espanto do mundo

viventes ainda

passando por aqui

condenados sem crime nem auto de justiça

não gente querendo ser gente

como toda a gente que é gente

aspirações à terra e à vida

a utopia dum sítio ao sol

sonhos adiados

atirados para lá do horizonte

para trás do futuro

sem direito ao fogo

simplesmente deixados ao Deus dará

além da urbe

no espaço e no tempo

aquém da pátria que os pariu

desconstruída da ideia de libertação

suspensa pela “Cosa” farsando o Estado

sem direito nem despacho

ainda que só de si

que melhor é morrer assim

do que ser eterno traidor

escravo ou corrupto

filhos de mãe nação nenhuma

destituídos de projecto de vida

excluídos da ideia de país

sem chão, sem pasto, nem fé

em qualquer eventual vontade

ou apregoada verdade

discursando a resolução

dos problemas do povo

ou prometendo o paraíso além vida

duvidas

até já sobre a sua existência por cá

endemicamente inconstituintes

gado carregado a granel

em camiões velhos do mercado

conduzidos por outros inconstituintes

descarregando manadas de sonhos lindos

em depósitos de pobreza à parte

horrorosos

de onde os gemidos lancinantes da fome

amolando a navalha do desespero desprezado

não assalte o cofre da inconsciência

ao primeiro secretário do comité do partido

homem novo

reinventado do chefe-de-posto colonial

enquanto esperam vegetando nessas docas de partida urgente

pró castigo no outro inferno cristão

lá em baixo ou lá em cima

de nada

a reinvenção da história abjurada

congénita sina secular de gerações

descartadas de tudo

feitas hordas sem legado nem registo

em qualquer cartório

do Estado e do Céu

ou de qualquer outro império total

carburando a pobreza, atraso e medo

fábrica de terror suspendendo o presente

assassinando o futuro

onde até só a ideia de amanhã é subversão

a reinvenção de perigosos agitadores

face à rapace cobiça voraz

de bestiais bocarras insaciáveis

sedentas de terra, ouro e poder

engordando-se de vidas vilipendiadas

traídas pela cumplicidade do mundo

calado

só...

Luiz Araújo

Janeiro 2007